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Alundra 2 - Uma lição sobre camadas de uma história




 Falar de jogos do primeiro Playstation é uma tarefa um tanto difícil: os jogos 2D com certeza são incríveis, mas os 3D ficaram terrivelmente datados, porém existem histórias que se sobrepõe aos polígonos dos primórdios do Maya e ainda são capazes de dar um grande charme para algo tão velho.


Um senhor de 18 anos

 Alundra 2: A new legend begins  é um jogo de ação\RPG 3D desenvolvido pela Matrix Software (Final Fantasy Legends: Toki no Suishō) e distribuído no ocidente pela Activision em 2000. É um jogo recheado de puzzles, história profunda, personagens cativantes, inimigos e fases complexas além de um gameplay fluído, porém com gráficos extremamente quadrados e trilha sonora boa, mas repetitiva.

 É distribuído em fases onde o jogador libera um caminho no mapa-múndi ao completar cada área, no melhor estilo super mario world, podendo posteriormente explorar todas as áreas novamente para concluir as dezenas de mini-games e desafios.

 Possuí um clima leve com cenas muito hilárias (potencializadas pelos gráficos antigos), o que na época foi rechaçado pela crítica que esperava um tom mais sombrio como o antecessor Alundra. (Me parece que essa crítica não atentou a detalhes do enredo que tornam Alundra 2 uma obra complexa e cheia de camadas).

 A história segue o espadachim procurado Flint, o clássico protagonista silencioso dos antigos RPG’s japoneses, um caçador de piratas que se alia a princesa Alexia do reino de Varuna para expor a relação entre os piratas e o vilão Barão Dias, que aliado ao mago Mephisto, aprisionou o rei fisiculturista e colocou um fantoche de madeira em seu lugar.

 Armado com sua espada e um pequeno broquel que aumenta sua defesa passiva, Flint enfrenta seus desafios com combos, anéis mágicos e ainda é capaz de aprimorar suas habilidades ao longo da gameplay.

 Já nos primeiros momentos de jogo temos o protagonista invadindo uma máquina voadora, após um rápido tutorial enfrentamos diversos robôs coloridos com chaves presas as suas costas como se fossem máquinas de corda. Conhecemos também a família do pirata Zeppo, um grupo engraçado que retorna centenas de vezes ao longo da narrativa com os melhores diálogos do jogo.

 Tudo é divertido:  a mecânica de luta que consiste em dar espadadas nos inimigos e desviar de ataques perigosos, trilha sonora que mistura elementos eletrônicos a instrumentos clássicos, além de uma ambientação steampunk (ou melhor keypunk) colorida e bastante única. 

 Já seguindo os passos dos Final Fantasy dessa geração, possuí diversos cortes cinematográficos em suas CG’s e com uma edição bastante eficiente nos momentos de comédia que são bem acentuados.

 Mas isso é só a primeira impressão.

Sombrio é melhor?

 Hoje temos um massa de autores e público exaltando universos complexos próximos a nossa realidade, obscurecem a história para que seus personagens assumam o tom cinza do nosso mundo real. Quando é brilhantemente executado temos obra como Game of Thrones ou a série The Witcher, que se sobrepõe ao gênero e nos mostram histórias reais e dolorosas em um mundo fantástico, nos fazem refletir e deixam uma marca profunda no público.

 Mas um  universo sombrio com personagens cinza não é garantia de profundidade e nisso Alundra 2 se destaca de forma mais que primorosa, pelos olhos do jovem protagonista viajamos por um mundo engraçado e colorido, porém em meio a conspirações, traições e histórias paralelas sutis, mas que excitam a reflexão. Nada é entregue de bandeja ao jogador, ele deve se atentar ao detalhes por si só.

 E isso constrói uma diversidade de camadas até para o mais simples Quadjuvante.

#ESSE É O ALERTA DE SPOILER SOBRE UM JOGO DE MAIS DE 15 ANOS#

 












Flint o caçador de piratas!

 Esse é um clássico protagonista silêncioso, um recurso dos RPG’s japoneses mais antigos onde nenhuma linha de diálogo é do jogador - apenas há interações básicas com sim ou não - era utilizado para forçar uma identificação entre player e protagonista onde a personalidade de um completa o outro.

 Mas Flint não carece de personalidade mesmo só se comunicando com sim e não, ele possuí uma grande expressividade em seus gestos, os gráficos ainda que poligonais conseguem demonstrar quando o personagem dá de ombros ao não concordar com um NPC, ou a forma como ele empunha a espada quando sente raiva, tudo fica bem marcado e demonstra como ele é enérgico e de personalidade forte.

 Durante a narrativa é o primeiro a encarar o perigo de frente e enquanto o jogador esmaga o controle para resolver os puzzles das fases, acaba também revelando a face criativa e perspicaz de Flint.

 Mas o que faz um adolescente sair pelo mundo caçando piratas? Vingança. 

 Quando criança Flint perdeu os pais em um atentado pirata que visava seu pai, um dos grandes espadachins de Varuna Heatchcliff, uma das barreiras para a ascensão do barão Dias. A mãe de Flint se sacrificou para salvar o filho emboscado, o garoto cai no mar deixando seu pai gravemente ferido para trás. Flint sobrevive e busca vingança.

 Anos se passam e o garoto ressurge como um temido caçador de piratas, porém a parceria dos piratas com o barão tornou Flint um homem procurado e com uma recompensa por sua cabeça. Esse é o background do protagonista antes mesmo da primeira interação do jogador e é apresentado homeopaticamente ao longo da narrativa.

 As relações do protagonista com todos os personagens que cruzam seu caminho são interessantes e evoluem com o tempo - os piratas inimigos mortais  mostrados como seres desalmados, ganham personalidade e cada um deles mostra sua parte no todo em sua comunidade - alguns se tornam aliados de Flint (ele próprio se torna um pirata em uma virada de eventos), mas a melhor relação é com a forte princesa do reino de Varuna.

Alexia a princesa por seu reino!

 Essa personagem é inesquecível, a jovem princesa já suspeitando do perverso barão Dias e seu aliado Mephisto viaja para outro continente para encontrar provas do envolvimento do barão com os piratas. 

 Alexia sempre toma a iniciativa mesmo que isso a coloque em perigo e nos momentos mais cruciais auxilia Flint a escapar das mais variadas situações em mudanças de gameplay que surpreendem o jogador.

 Está além de uma personagem forte, é uma personagem humana. Ela é desligada e até ingênua, comete erros e não se importa em pedir ajuda, age completamente diferente de qualquer princesa já estabelecida, tanto na armadura que são placas de metal rosa e não objetificam Alexia.]

 Mesmo quando a narrativa obriga ela a ser mais sensual isso é por escolha dela e em nenhum momento o jogo é desrespeitoso (O que é diferente no caso de algumas NPC’s com orelhas de coelho que estão em alguns locais por puro fetiche).

Alias o jogo possuí uma sequência em que Alexia canta e dança que causa uma quebra na narrativa  impressionante.


 E nisso mora a maior lição que esse jogo ensina: O mundo pode ser denso, as pessoas cruéis, mas seu enredo pode ser brilhante,  até feliz e ainda assim você terá um material recheado de profundidade que quebra clichês, isso é claro se deve a um mundo narrativo bem construído.

A personalidade do Todo.
 Nas primeiras horas do jogo você vai se acostumar com as mecânicas de action rpg e exploração do ambiente, mas já no primeiro chefe Alundra 2 mostra que tem mais do que se pode aparentar. A câmera até então 3D vista de cima e controlada pelo jogador muda subitamente após uma CG explicando o enredo.

 Nesse ponto o jogo se assemelha a um jogo de luta 2D; não é um combate difícil, mas já mostra como será recheado de viradas na história e na gameplay, tudo é uma descoberta incessante.

 Cada cidade possuí moradores vivos com rotinas diárias, é um sistema arcaico porém já demonstra um grande pensamento vanguardista em gamedesign presente nesse jogo, existem itens interativos espalhados por todos os locais com efeitos variados que podem auxiliar o jogador ou apenas mostrar uma face da personalidade de Flint.

 É um jogo recheado de surpresas.

 Os calabouços são memoráveis e os puzzles necessários para melhorar seus combos de espada são desafiadores, e em momentos específicos o jogo pode te entregar uma gameplay completamente nova: Um exemplo é a fase Ox Tank que ao chegar ao final e se deparar com o chefe, o jogo assume a forma de um runner divertidíssimo que permite ganhar itens antes da dura batalha.

 Temos Coliseus de touros que você pode apostar, mini-games que lembram jogos clássicos como pac-man, space invaders e outros. E acima de tudo isso temos pequenas histórias paralelas que engradecem a experiência do jogador.

 Na cidade de Toroledo Flint e Alexia precisam passar pelo terreno de Pierre e sua família, porém a esposa de Pierre estava furiosas e impediu qualquer um de passar (a mulher é bem violenta), Flint  conhece a filha de Pierre, uma garotinha que vem sofrendo muito por conta das brigas constantes de seus pais (A história de uma família disfuncional em forma de jogo).

 Pierre é viciado em apostas e todo dinheiro que ganha acaba gastando na arena de touros, não leva nada para casa e deixa sua mulher nervosa, fazendo ela o agredir e expulsar de casa diversas vezes, a filha assiste tudo sem fazer nada.

 O protagonista acaba dando dinheiro a Pierre e o obriga a voltar para casa para acalmar sua mulher e permitir a passagem.

 Algum tempo depois o jogador retorna a casa de Pierre e descobre que ele abandonou a família para se juntar a igreja da chave, mesmo com sua filha o seguindo até um lugar perigoso e implorando para voltar, ele segue em frente dizendo que a igreja prometeu felicidade eterna. Flint e Alexia decidem traze-lo de volta.

 Os heróis chegam tarde e Pierre tem uma chave estranha cravada em suas costas, os sacerdotes da igreja giram a chave como se estivesse dando corda em um brinquedo. A face de Pierre parece estar sem vida, ele não atende a chamados, só repete as mesmas palavras “Gi Gi Gi”. 

Um escravo da igreja. (De crítica à família disfuncional muda para crítica à seitas).

 Durante a narrativa podemos visitar Pierre em sua casa com a chave girando cravada em suas costas, mas incrivelmente ele se tornou um homem trabalhador que traz orgulho para esposa. A filha diz que não vê mais vida em seu pai e o teme.

 No fim a igreja é uma ferramenta de Mephisto, todas as pessoas sob seu comando se rebelam e Pierre quase ataca sua família, porém Flint derrota o mago do mal e livra todos da influência das chaves mágicas.

 Essa história demonstra o talento do escritor Hiroshi Miyaoka em conhecer e entender o mundo da narrativa, ele sabe exatamente como os eventos da história principal atingem até mesmo os NPC’s mais esquecíveis e assim aquele mundo colorido e divertido é também um universo complexo de níveis de interação social.

As recompensas do jogador

 Alundra 2 tem a proposta de utilizar todos os recursos do psOne, a sua maneira tenta apresentar gráficos bonitos e uma gameplay variada que te mantém preso por si só, mas a narrativa é um ponto alto, sejam nas histórias paralelas entregues aos jogadores mais atentos quanto nas CG’s brilhantemente editadas e com cortes cinematográficos ainda que com gráficos datados.

 Esse é um jogo obrigatório qualquer fã da biblioteca do saudoso Playstation, recomendado para os amantes de boas histórias e uma aula de gameplay para os entusiastas do mundo dos jogos


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 Eu sou Victor Ponciano estudante de Tecnologia em jogos digitais pela FATEC – Carapicuíba. Esse texto faz parte da série Universos Inspiradores onde busco analisar obras variadas que contam boas histórias e nos inspiram.


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